O Caminho de Ferro da Barragem do Pego do Altar

publicado originalmente na revista "O Foguete" nº 24 de 2010 da Associação de Amigos do Museu Nacional Ferroviário

Barragem do Pego do Altar e central hidroelétrica em meados do século XX. (Foto Col. Rui Jorge Consciência)

É do senso comum que nada dura para sempre, sendo que esta simples lei da existência se aplica quer a um ser vivo, quer a qualquer outro elemento que nos rodeia, como por exemplo, já que de comboios falamos, uma linha ferroviária. E sendo na generalidade dos casos, impossível saber, à priori, qual o tempo de vida útil de uma nova infraestrutura, situações existem em que linhas nascem já com o seu fim "anunciado" devido ao facto de se limitarem a servir unicamente de apoio a uma atividade bem limitada no tempo, sendo este o caso da linha industrial que vai ser alvo de atenção do presente artigo.

Creio não errar muito ao afirmar tratar-se de uma linha de caminho de ferro praticamente desconhecida da generalidade de todos os que se interessam por este meio transporte uma vez que nunca constou em nenhum plano de transportes nacional, não comunicava com a restante rede ferroviária e o seu objetivo era o transporte de matéria prima para a construção de uma barragem, mais precisamente a do Pego do Altar, no concelho de Alcácer do Sal.

Hidráulica agrícola

Com o objetivo de impulsionar o desenvolvimento da agricultura em Portugal é criada em 1930 a Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola (J.A.O.H.A.) a qual fica encarregue do estudo da rega de quatrocentos mil hectares do território nacional. Em 1935 é apresentado um plano para construção de 16 obras hidroagrícolas espalhadas pelo país, sendo dois anos mais tarde, em 1937, apresentado um segundo plano mais ambicioso que contemplava a construção de 20 barragens possibilitando a irrigação de 106 mil hectares e a produção de 308,8 milhões de kW, com um custo total de execução da ordem de um milhão e trezentos mil contos (aproximadamente 11,8 milhões de Euros).

Entre as diversas obras do plano, encontravam-se as Obras do Curso Inferior do Vale do Sado que compreendiam a construção de duas barragens, a do Vale do Gaio no rio Xarrama e a do Pego do Altar na ribeira de Santa Catarina, com um custo estimado de mais de 116 mil contos (aproximadamente um milhão de Euros) e que possibilitariam a rega de mais de oito mil hectares, além da produção de energia elétrica.

Pego do Altar e as obras de enrocamento da barragem. Na foto está bem patente a magnitude dos trabalhos. Durante os anos da construção, esta pequena localidade algergou milhares de trabalhadores, dispondo de equipamentos como hospital e teatro.(Foto Col. Rui Jorge Consciência)

Mapa da linha de caminho de ferro entre a pedreira em Corte Pereiro e a Barragem de Pego do Altar

Barragem Pego do Altar

O projeto da rega "da região agrícola compreendida pela bacia hidrográfica da Ribeira de Santa Catarina e pela faixa de terreno marginal entre Alcácer do Sal e a Ribeira da Marateca" é anterior à criação da J.A.O.H.A., embora tenha cabido a esta Junta a realização dos estudos necessários que culminaram na apresentação de um anteprojeto da Albufeira do Pego do Altar em 1933, elaborado pelo Engenheiro Civil Afonso Zuzarte de Mendonça.

Este estudo previa a construção de uma barragem de enrocamento[1] a construir com pórfiros[2] que se encontravam na região, nomeadamente nos Afloramentos de Biscainha, Romeiras, Gafanhões e Moinho da Ordem. Segundo afirma Afonso Zuzarte de Mendonça "...Previmos o transporte da pedra em vagões tirados por locomotiva sobre via férrea provisória, à qual será necessário dar um desenvolvimento de cerca de 12 km por causa da passagem sobre o Rio Mourinho.

Todavia, no caso de ser construída a linha férrea de via larga, em projeto, de Casa Branca a Alcácer do Sal, a tempo de ser utilizada na construção do dique, bastará fazer um ramal para o estaleiro, com cerca de 4 km, obtendo-se assim acentuada economia não só no transporte da pedra, mas também no dos outros materiais de construção, que poderão ser levados até ao local da obra em caminho de ferro.

Preços

-Transporte em vagonete decauville, movidos a braços de 1m³ de produtos da escavação para implantação do dique, à distância de 240 m e sua arrumação... 3$30

-Transporte de 1m³ de produtos de escavação da galeria de fundo, em vagonetes decauville, movidas a braços, à distância média de 240 m e sua arrumação.... 3$55

-Transporte de 1m³ de pedra britada em vagões tirados por locomotiva, à distância média de 12 km.... 12$00

-Transporte de 1m³ de pedra de alvenaria e grandes blocos para enrocamentos, em vagões tirados por locomotiva, à distância média de 12 km, incluindo sua carga e descarga.... 16$80"

O projeto definitivo da obra apresentado em 1935 e, logo a 10 de janeiro de 1936, é aprovado pelo Ministro Duarte Pacheco que manda de imediato abrir concurso para a sua execução. A obra foi adjudicada em 20 de agosto de 1936 a Manuel Xavier Ramalho Rosa, que a trespassou, por sua vez, para a Sociedade Portuguesa de Empreitadas Limitada, constituída por escritura de 14 de maio de 1937.

É nesta altura que estudos levados a cabo na região do Moinho da Ordem (Gafanhão) revelam que contrariamente ao anteprojeto, não existe nesta zona matéria prima adequada nem suficiente para a construção da barragem, sendo necessário localizar uma outra pedreira, cuja escolha viria a ser a de Corte Pereiro.

Não terá, no entanto, sido significativo o desenvolvimento que a Sociedade Portuguesa de Empreitadas Limitada deu aos trabalhos de construção, uma vez que se lhe rescindiu o contrato a 9 de novembro de 1940, sucedendo-lhe a firma Bastian & Costa, Limitada à qual, não obstante todas as dificuldades técnicas e administrativas, se deve a conclusão da barragem, do descarregador, da toma de água, do túnel do canal Gachinha-Palma-Marateca e dos canais.

A Barragem do Pego do Altar foi inaugurada com pompa e circunstância no dia 30 de maio de 1949, constituindo um verdadeiro orgulho da engenharia portuguesa, com os seus 63 m de altura, 192 m de comprimento e uma albufeira com capacidade de 94 milhões de metros cúbicos, fazendo desta a maior do seu tipo em toda a Europa. Ainda associado ao projeto, estava uma central hidroelétrica equipada com uma turbina de 2720 cv e uma rede de regadio com uma extensão de 38,677 km (canal de Santa Catarina 0,782 km; canal Gachinha-Palma-Marateca 21,725 km; canais do Vale do Gaio e de S. Romão 2,170 km; canal da Comporta 14 km). O custo final das Obras do Curso Inferior do Vale do Sado, 270 mil contos(aproximadamente 2,4 milhões de Euros), ficou no entanto muito além dos 116 previstos pelo estudo de 1935 da J.A.O.H.A..

Comboio carregado de pedra, na sua viagem da pedreira de Corte Pereiro para Pego do Altar. Este troço da linha junto à margem da Ribeira do Remourinho quase faz lembrar a linha da Beira Baixa ou mesmo a linha do Douro. (Foto Col. Rui Jorge Consciência)

O caminho de ferro

Com a conclusão dos trabalhos, chegou inevitavelmente o fim anunciado da linha de caminho de ferro que ligava Pego do Altar com a pedreira em Corte Pereiro. Esta linha foi um elemento essencial no sucesso da obra pois por ela foram transportados ao longo de quase uma década as 648672 toneladas de pedra usadas no coroamento da barragem.

Com uma extensão de aproximadamente dez quilómetros, o seu traçado iniciava-se junto à povoação do Pego do Altar, onde se localizavam as oficinas para manutenção do material circulante e locomotivas, dirigindo-se para norte contornando junto a esta povoação o pequeno monte das Mourarias e seguia serpenteando por terreno ondulado até passar a cerca de um quilómetro da povoação de Santa Susana. Pouco depois deste ponto, a linha aproximava-se da Ribeira de Remourinho, acompanhando a margem direita deste curso de água por alguns quilómetros, até atravessar um seu afluente, e a partir daí se dirigir para a pedreira.

Dada a morfologia acidentada do terreno atravessado, são inúmeros os aterros e desaterros ao longo do trajeto, e é de salientar a existência de dois pequenos túneis, perfurados na rocha e reforçados em alguns pontos a cimento na abóbada e alvenaria nas paredes laterais, e uma ponte, sobre o afluente da Ribeira de São Cristóvão, com aproximadamente 30 metros de extensão e constituída por dois pilares de alvenaria sobre os quais assentava um tabuleiro metálico. Não obstante as curvas serem na sua maioria de raio reduzido, nota-se que houve cuidado na construção deste caminho de ferro, quase como se de uma linha da rede nacional se tratasse.

Imagem captada, possivelmente, na pedreira em Corte Pereiro, vendo-se uma composição a ser carregada com auxílio de uma grua a vapor. A altura do trabalhador junto ao último vagão comparada com a largura da via parece sugerir a bitola standard.

No plano inferior podem-se observar a via decauville uma das vagonetas que operavam no estaleiro das obras de construção da barragem.

Investigar estes pequenos caminhos de ferro industriais, conduz geralmente e sempre a mais perguntas do que respostas, uma vez que é praticamente nula a informação sobre os mesmos, obrigando-nos a fazer conjeturas baseadas em informações, materiais iconográficos ou mesmo testemunhos de pessoas que ainda assistiram ao seu funcionamento.

Assim, a construção desta linha terá ocorrido em 1939 ou 1940 visto esta já ser referida num projeto de 1940 para alteração da galeria de desvio da ribeira para possibilitar a construção da barragem. Sendo a linha levantada após o final das obras, Roberto Joaquim Pombo Consciência, um morador de Pego do Altar, que em criança assistiu à construção e inauguração desta grande obra, referiu que o tabuleiro metálico da ponte esteve guardado até há poucos anos nas antigas oficinas do caminho de ferro, localizadas mesmo na parte de baixo do restaurante de que ele e o seu filho Rui Jorge Consciência são proprietários.

Ainda segundo Roberto Joaquim Pombo Consciência, as locomotivas que circularam nesta linha, dizia-se, teriam vindo de Marrocos. Esta informação não pôde até à data ser confirmada assim como não se sabe o número de locomotivas (pelo menos duas) que circularam, nem o destino que tiveram após 1949. Pela simples observação de fotografias apenas se pode afirmar tratarem-se de locomotivas a vapor tipo tramway, possivelmente de bitola standard. Quanto ao material circulante, observa-se nas fotografias existirem vagões de dois tipos; vagões plataforma de bordas baixas e vagões tremonhas com dois corpos, que possivelmente poderiam ser removidos pois alguns apresentam um espigão lateral.

Junto aos trabalhos da barragem existia ainda uma rede de via Decauville onde circulavam vagonetas movidas a braços.

Duas vistas dos trabalhos da barragem junto a Pego do Altar. Na fitigrafia superior é possível observar duas locomotivas nas posições A e B, sendo a primeira do tipo "tramway" e a segunda parecendo ser uma locomotiva a vapor com o tejadilho prolongado. Na imagem inferior pode observar-se uma locomotiva tipo "tramway" na posição assinalada pela letra C, assim como algumas vagonetas da linha Decauville num plano inferior ao da linha principal. (Foto Col. Rui Jorge Consciência)

Uma vez mais ficam uma série de questões por responder, prometendo voltar a este tema assim que surjam novos dados sobre o mesmo. E, porque não, desafiar algum leitor d'O Foguete que tenha mais informações sobre esta linha a que colabore e as partilhe com todos os leitores? Como tudo o que existe, também este pequeno caminho de ferro tem o direito de ter a sua história contada e não cair no esquecimento.

Todo o seu traçado ainda existe, sendo mesmo, algumas partes, usadas como caminho público. E já que o novo Plano de Ordenamento da Albufeira do Pego do Altar de 2005 tenta potenciar o desenvolvimento turístico deste local, porque não incentivar a Câmara Municipal de Alcácer do Sal a criar uma via verde no antigo leito desta via? No ponto 3° do Artigo 30° do Plano de Ordenamento da Albufeira em questão é mesmo afirmado que "Tendo por base caminhos ou trilhos já existentes, podem ser estabelecidos percursos, de pequena e grande rota, para o passeio a pé, a cavalo ou de bicicleta, os quais devem ser reconhecidos pela competente câmara municipal em articulação com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo e com a colaboração das associações desportivas apoiantes destas modalidades".

Por fim, uma palavra de agradecimento a Rui Jorge Consciência pelas fotografias cedidas e ao seu pai Roberto Joaquim Pombo Consciência pela agradável conversa e pelas muitas informações que me transmitiu sobre essa época em que os comboios não paravam de transportar pedra para a construção da Barragem do Pego do Altar.

Ricardo Barradas

NOTAS


[1] Uma barragem de enrocamento é um maciço formado por fragmentos de rocha compactados em camadas cujo peso e imbricação colocam entre si a estabilidade do corpo submetido ao impulso hidrostático.
[2] Rocha cuja origem se deve a erupções vulcânicas antigas.

O que ainda se pode ver

Seis décadas após ter sido levantada, os vestígios desta linha ferroviária encontram-se, quase se pode dizer, num excelente estado de conservação. O traçado está intacto, existindo ainda grande quantidade de balastro, os pilares da ponte parecem preparados para receber um novo tabuleiro e o túnel, que tive a oportunidade de visitar, mantém-se aparentemente resistente. Assim, a conversão da deste traçado numa via verde não seria onerosa para as contas autárquicas, com a vantagem de ser mais um ponto de atracão turística para o concelho e Alcácer do Sal.